A COVID-19 é um acontecimento liminal. Repentinamente, reconfigurou a organização da vida quotidiana, colocou a ordem política à prova e levou à recessão econômica. Confinamento, máscaras, distanciamento social, todas essas medidas preventivas que visam conter o risco de contágio dissolveram formas tácitas da socialização, as quais respondem por boa parte da familiaridade do mundo social que habitamos. Hospitais em colapso, covas coletivas, corpos em putrefação nas casas e nas ruas: sofrimento, morte e epidemiologistas ocuparam os noticiários, as fronteiras foram fechadas e a política foi reduzida à saúde, seja para gerir a ameaça ou para negá-la. Bolsas de valores desmoronaram e a atividade econômica ficou restrita ao essencial.
Nesse processo, a pandemia atual tornou evidente os limites da sociedade do mercado, o caráter trágico de injustiças da ordem social e modificou as condições da disputa política. Isto é, a pandemia também fez emergir novas maneiras de agir, pensar e sentir. Da favela de Paraisópolis, em São Paulo, aos moradores de rua em Montevideo e mulheres indígenas no Equador, a pandemia forçou o florescimento de novas formas de solidariedade e resistência e reafirmou a importância do Estado e das instituições internacionais. Só o tempo dirá se da experiência global de sofrimento tomará forma uma nova visão de comunidade política, mais inclusiva e cosmopolita. Isso significa que, se é razoável afirmar que a COVID-19 perderá em urgência epidemiológica com o avanço da vacinação, o mesmo não se pode dizer de suas implicações sociais, políticas, econômicas e culturais.
A América Latina foi a região mais afetada do planeta. Disfuncionalidades sistêmicas crônicas, corrupção sistemática, neoliberalismo, sub-financiamento do sistema de saúde, desigualdades extremas – a pandemia conferiu um realismo mórbido a problemas estruturais da região. Este livro aborda esses problemas. A América Latina frente ao governo da COVID-19 foi redigido por pesquisadores da Rede Latino-Americana SARS-CoV-2, Poder e Sociedade (RedSars2), sediada no Colégio Latino-Americano de Estudos Mundiais, que é um Programa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO/Brasil). Fundada em setembro de 2020, a RedSars2 germinou da desarticulação prematura de outra rede, a Pouvoirs et Sociétés face à la Crise du COVID-19 (Posoc-19). Não fosse o empenho dos fundadores da Posoc-19, a RedSars2 e este livro talvez não tivessem nascido. Por isso, gostaríamos de registrar nosso agradecimento aos fundadores da Posoc-19, Jean-Michel de Waele e Laurent Sermet.
É em contextos de crise aguda como o que atravessamos que a universidade e as redes de pesquisa se revestem de importância histórica particular. Primeiro, pelo registro; é muito provável que outras pandemias desse porte surjam, e o que escrevemos, hoje, certamente terá algum proveito para aqueles que virão. Segundo, porque a universidade pode oferecer algum esclarecimento sobre aquilo que nos aflige. Por fim, porque, para enfrentar o desconhecido, precisamos unir forças, na tentativa de elevar o presente histórico ao pensamento. É com essa concepção crítica e colaborativa de conhecimento científico que este livro foi organizado.
Historicamente, sabemos que epidemias não se reduzem ao adoecimento e à morte. Elas decorrem de vulnerabilidades produzidas pela própria sociedade, da urbanização precária, de guerras, do desmatamento, da circulação crescente de pessoas, inter alia. São eventos biológicos com implicações existenciais, que envolvem incerteza, medo e desorientação, assim como autoquestionamento e aprendizagem. O esforço de dar sentido à catástrofe que encarnam, portanto, nos leva a acessar características estruturantes da experiência humana e da transformação social. Esperamos que, de alguma maneira, este livro contribua com essa busca.
Estevão Bosco, Rebecca Lemos Igreja e Laura Valladares
São Paulo, Brasília e Cidade do México, setembro de 2021